Capitulo Parte I BERNARDO
Quarto dia
Já experimentou a sensação de estar em um dia nublado, anoitece, a brisa fria te ronda e então você olha para o céu e não enxerga nada, tudo opaco como se estivesse encarando uma imagem borrada, uma imensidão escura, borrada e opaca? Seus olhos vão se agoniar um pouco, porque eles tentarão focar em algo, uma estrela, lua, qualquer coisa, um mero brilho, mas não haverá nada… Essa sensação foi uma das coisas mais incômodas do meu dia, porque até então, enquanto eu imaginasse o céu nublado, enquanto não o tivesse enxergado de fato, não teria encarado aquela realidade escura, opaca e borrada… Bem diferente de tudo que imaginava e aí comecei a sentir a densidade do dia, do vento, era como se tudo de repente estivesse pesado, como se algumas coisas começassem seus efeitos somente após ter se constatado a realidade: até os sentidos precisam ser provados, na mais pura e oblíqua verdade!
Coloquei Tchaikovsky para tocar. Era incrível poder ouvir aos pés do ouvido aquilo que era possível somente ao vivo, e depois em discos, aí vieram as fitas e depois os CDs e, pôr fim, a tecnologia tomou conta da música do passado. Hoje eu entro em um aplicativo online de músicas e posso, com facilidade, deleitar-me ao som de Tchaikovsky. Por que música clássica? Eu acho incrível como conseguem compor uma história com notas e uma boa entonação e também tem o ar rudimentar!
Comecei a caminhar pelas estruturas enormes da faculdade, comecei a pensar em como tudo aquilo era grande, vazio, frio. E confesso que o céu nublado não havia ajudado, meu peito estava apertado, sentia como se estivesse literalmente caminhando dentro do meu futuro premente e isso me assustava! Em quanto tempo, por quanto tempo e acima de tudo, qual será o meu tempo?
Porque a vida, bom, ela não respeita seu jeito passivo de andar, não vai esperar, calma, as suas indecisões passarem e muito menos deixar você com cinco ou seis minutos de bobeira para pensar sobre o seu futuro e algumas besteiras…
Eu vou passar quatro anos nesse lugar, seriam cinco, mas enquanto andava aqui, um já se passou e eu ainda me pergunto, para onde irei depois de tudo, onde vai ser o meu lugar e quanto tempo terei de passar lá.
Alguém bate em minhas costas, os fones caem e eu volto à realidade. Encaro meu amigo com um olhar soturno de entusiasmo, deixe-me explicar um pouco sobre ele: André é o tipo de homem que consegue tudo o que quer, tem a vida rente às linhas dos pés e só precisa caminhar sobre ela. Ele tem um ar passivo e sabe bem como viver tudo isso! Ao contrário de mim, sou melancólico e abandonado aos meus próprios erros e pecados, mas o André, bom, ele gosta de pecar, gosta de errar e depois dar risadas sobre tudo aquilo, ele não se joga nas pessoas, são elas que se jogam nele!
— Vamos sair para beber?
— Temos aula daqui a quinze minutos
— Ah! Então vamos ali comigo, rapidinho, preciso comprar algo para comer
Eu sabia que ele não queria comer, esse era o jeito dele de coordenar a situação, onde eu concordava como um bom amigo em acompanhá-lo e a culpa de matar aula e acabar no bar da faculdade recaia sobre ele e sua própria vontade, não teria nada a ver comigo, apenas fui um bom amigo… Mas eu sabia que não era bem assim que o mundo seguia.
Ele jogou os livros do curso sobre a mesa do trailer atrás da faculdade. Era um lugar pacato onde as pessoas poderiam comer, mas também poderiam beber. Era um disfarce perfeito! Encarei os livros, todos aqueles enormes e caros livros que eu poderia ler e marcar as páginas, se fossem meus, é claro! Mas ele me concedia total liberdade: em troca dos livros eu lhe daria as notas, os trabalhos e mais um semestre sem uma única dependência. Não, ele não era um mal amigo, era alguém que sabia como a vida era, eu tinha até certa sorte por tê-lo comigo, porque mesmo que eu fosse usado, (encarando os livros caros) pensava: “o uso é recíproco”.
— Cara! Estou boiando na matéria
— Eu vou fazer os resumos para você
— Sério? Eu não vivo mais sem você, cara!
— Ata! Sei…
— Então...
Esse era o jeito dele de dar início às conversas sobre suas aventuras românticas, mas que nunca lhe enchiam a alma. Ele era incompleto e buscava se completar tirando o pouco que os outros tinham. Suspirei e olhei esperando ele começar:
— Tem aquela mulher que conheci aqui na faculdade sabe, ela não tem atitude cara, mulher também tem que ter… Digo! Atitude. E eu estou enrolado com aquela da farmácia, porém você sabe! Aquela mulher é muito selvagem… Tem a Giovana que me trata como um namorado mesmo, vive me dando presentes e esses dias apareceu lá em casa com um bolo, só porque postei que queria comer um bolo…
— Deixa eu ver se entendi: de uma você quer atitude, de outra você quer menos atitude e da última quer o quê? Um meio termo? As mulheres não nasceram para agradar a opinião alheia!
— O quê!? Você virou um “homem feminista”? Que irônico.
Ele deu gargalhadas acenou para a garçonete e ela veio:
— Traz dois chopes, meu amor…
Ela revirou os olhos para “o meu amor” e saiu de forma súbita! Eu suspirei e respondi:
— Não sou adepto a extremos e também não quero beber!
— Você precisa relaxar… Um chope não vai te matar, vai te deixar mais leve para assistir a aula.
— Pelo andar das coisas não vamos assistir aula...
Ele pegou o copo com a mão direita, levou a boca e ergueu uma sobrancelha, dizendo “sério?” de um modo irônico e então virou o copo. Suspirei, estava ferrado mentalmente como eu sempre estou e talvez se afrouxasse um pouco mais a corda, aquela que coloco envolta do meu pescoço para cumprir meu compromissos, talvez ficasse melhor com isso… Um pouco frouxo e um tempo a mais para respirar, só um segundo e um gole de chope! Peguei o copo e virei, precisava daquilo. Às vezes você vai querer fugir de si mesmo e quando estiver no limite não irá escolher os meios, apenas vai com o que te derem.
— Esse é meu garoto! — gritou André, quando me viu virar o copo descartável de 500ml de chope.
Tinha um gosto amargo, ruim e estava meio quente. Deixou, no fundo da minha garganta, um gosto de azeitona estragada, mas como eu disse, você não escolhe os meios… Olhei para André, estava pronto para ouvi-lo balbuciar sobre mulheres e ele começou:
— O que você acha?
— Sobre o quê?
— Sobre elas, acha que fico com todas?
— Se elas forem espertas, vão correr de você!
— Eu sou lindo! Não tem como alguém não me querer, eu tenho tudo o que quero…
E ele realmente tinha tudo o que queria e uma bela e infalível aparência, de cabelos loiros e olhos azuis, era uma pena que fosse daquele jeito! Mas é o que dizem, às vezes um frasco lindo não contém o melhor cheiro…
— Fique com todas.
Eu disse. Não queria opinar mais sobre aquilo, porque por mais que ele estivesse rodeado de amores nada férteis, ninguém nunca ficava, as mulheres eram espertas demais para usá-lo e deixar ele pensando que as usava, já que todo fim de mês lá estava André sem ninguém e sem nada!
Comecei a ficar bêbado. Beber não era meu costume, mas adormeceu um pouco todo aquele caos. Ouvi ele pedir outra rodada para a garçonete e ela veio com mais dois copos cheios. Comecei a me sentir leve, a mente se droga de forma tão fácil, desde o amor até o álcool!
André falou a noite toda sobre tudo aquilo que ele usava, as relações que ele trocava como quem troca de roupa e eu tive um pouco de pena, porque sabe, a parte de querer fugir da solidão eu sei como é, já tentei diversas vezes e não vou mentir, ainda tento! Contudo uma hora damo-nos por conta de que não adianta, alguns vazios jamais serão preenchidos e quanto mais você tenta, menos você ganha…
— Ei! Cara… está me ouvindo?
— Sim…
— Você tá bem?
— Não…
Então ele me olhou sério, era um bom amigo. Apesar de tudo aquilo, ele era uma das poucas pessoas que não conferiam um tom vago na pergunta sobre estar bem ou não.
— O que aconteceu?
Estava bêbado. Não me importava em dizer uma ou duas palavras, sobre como eu me sentia completamente inútil neste mundo!
— Me sinto inútil.
Disse. Ele franziu a testa e ficou sério.
— Você não é inútil, você é muito importante, se não fosse por sua causa eu não estaria aqui! E por “aqui” ele quis dizer o terceiro semestre do curso, esse era o mal de se sentir inútil… Esse sentimento não era em relação ao que podia oferecer aos outros, mas sim ao que faltava oferecer a mim. Ninguém nunca entendia e ele também não entenderia, porque isso era algo que atormentava minha cabeça todos os dias.
— Eu sei, André! Não se preocupe é um sentimento bobo
— Sabe o que você precisa cara, precisa sair… se divertir e ver pessoas, ir em um barzinho sem objetivo nenhum, só pra relaxar!
— Hmm.
— Estou falando sério! Você se cobra demais, na faculdade e na vida, às vezes temos que abstrair, se não tudo pode colapsar!
Olhei pra ele e percebi uma coisa: aquelas falas não eram para mim, pelo menos não totalmente. Ninguém sabe as guerras internas do outro, ninguém sabe dos sentimentos guardados e talvez ali, naquele lugar, eu não fosse a pessoa mais desgraçada emocionalmente, talvez fosse ele, talvez fosse a garçonete que olhava o celular com uma cara descontente, talvez fosse o acadêmico que estava engolindo às pressas um hot dog para não perder a aula, cada um vive como pode e cada um colapsa como achar melhor.
— Você tem razão —
¾ eu disse. —Vou sair mais, abstrair, tentar ficar mais leve —
¾ eu continuei. Você vai me ajudar hein! Vamos curtir a vida ao máximo.
Nós demos uma gargalhada juntos e ele voltou ao tom leve e casual, depois me perguntou:
— Está melhor?
— Você me fez melhorar muito! Obrigada, André, você é um grande amigo… —
eu menti.
Sobre a Autora:
Uma autora independente que gosta de escrever tanto quanto de respirar, participou de varias antologias e foi uma das dez finalistas no concurso "cuenta me un cuento" de 2020. Também participou da antologia anjos caidos da dar books, onde o livro esta na amazon com o conto intitulado: "o testemunho de Delphin". Foi selecionada para o a antologia Teleportados com o conto: " Por de trás da pálpebras", no entanto não participou na formação do livro. Uma escritora inovadora, aspirante a poeta e muito concentrada em sempre dar o seu melhor, buscando uma oportunidade de provar o valor de suas palavras.
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